Desenvolvido com a colaboração de Donizetti, Renato e Elaine, moradores de Banhado.

Banhado: um breve histórico da luta de seus moradores pelo direito de permanência em sua terra
Moradores do Jardim Nova Esperança, uma comunidade do Banhado em São José dos Campos (SP) seguem na luta por permanência! Os avanços arbitrários do poder público, mais especificamente da Prefeitura da Cidade, usando coerção policial e bloqueando fisicamente as entradas do bairro, continuam deixando os moradores em constante alerta.

O Jardim Nova Esperança, mais conhecido como Banhado, é localizado na região central de São José dos Campos, São Paulo, e ocupa o fundo do vale no entorno do Rio Paraíba do Sul, sendo uma área de várzea – tanto que daí vem seu nome, por ser um ambiente geomorfologicamente específico de antigos alagamentos pelo rio supracitado. A área do Banhado possui cerca de 5,2 milhões de m², onde o bairro se encontra numa pequena porção em área da União e do Município. Com características predominantemente rurais, o Banhado tem uma produção hortifrutigranjeira que, inclusive, é comercializada no mercado da Região Metropolitana do Vale do Paraíba e do Litoral Norte de São Paulo.
Com um número aproximado de 2000 moradores e 460 famílias, o Jardim Nova Esperança se estende ao longo do antigo ramal da ferrovia Central do Brasil. No entanto, a ocupação do Banhado antecede a existência do trem, tendo sido iniciada por indígenas e quilombolas há mais de 100 anos – como aponta José Donizetti de Paula em seu depoimento dado por meio de áudios no WhatsApp à bolsista PIBCUL Pamella Provenzano. O morador de 57 anos, nascido e criado na comunidade, se recorda da paisagem que observava em sua infância das malocas indígenas instaladas no entorno do fundo da concha do Banhado e por seu barranco.
Além de assentamentos indígenas e quilombolas, em sua formação o Banhado contou com trabalhadores ferroviários e migrantes advindos do êxodo rural – principalmente do sul de Minas Gerais – pelos anos de 1930. Por volta de 1960 e 1970, com o advento de grandes indústrias na região, a população do bairro aumentou, pois passou a abrigar trabalhadores vindos do Nordeste também.
Portanto, é sabido que a população do Banhado é formada por trabalhadores. Além disso, a relação dos moradores com o manejo da terra para fins de agricultura é uma atividade forte e histórica da comunidade. Há produção de arroz, batata, mandioca, PANCs (plantas alimentícias não convencionais), plantas medicinais, além da piscicultura. Segundo dados censitários divulgados pelo Plano Popular de Urbanização e Regularização Fundiária do Banhado/USP, 41% das famílias do Banhado se alimentam diariamente com as produções da própria comunidade. Posto isso, há uma clara evidência da segurança alimentar garantida na relação terra-trabalho dos moradores-agricultores do Banhado. Quanto à qualidade de vida, acrescenta-se o fato demonstrado por outros dados do Censo publicados no referido Plano Popular, 38% dos moradores trabalham na própria comunidade e 56% trabalham num raio de até 1 km, podendo fazer esse deslocamento a pé e sem a necessidade de uso do transporte público. Portanto, para os moradores é percebida uma economia de tempo, maiores oportunidades, proximidade com os serviços de educação e saúde públicas. Para a Prefeitura, isso representa um menor investimento na infraestrutura de serviços públicos naquela região, tendo em vista que a mesma está no centro da cidade e com uma boa oferta de equipamentos públicos de saúde, lazer, educação e segurança.
As Histórias e a riqueza cultural do Banhado
A partir do depoimento dado por José Donizetti de Paula por WhatsApp, é compreendido como a história da comunidade se mistura com sua própria história de vida. Donizetti conta suas lembranças a partir do território em que nasceu, cresceu e vive há 57 anos. Segundo ele, a ocupação no fundo do vale do Paraíba do Sul iniciou há muito mais de 100 anos com assentamentos indígenas e quilombolas. Com a história de sua mãe – vinda do Espírito Santo e descendente de indígena e negro – e de seu pai – nascido em Monteiro Lobato, SP, e filho de indígena e português, Donizetti percorre as memórias orais do Banhado ao contar sobre o chão que guarda a rede de túneis que percorre o subsolo da cidade e dá no fundo do vale que, desde o século XVI, serviu de rota de fuga e de esconderijo para indígenas e pessoas escravizadas se protegerem de capitãos do mato, mas hoje esses túneis foram tampados com concreto pela Prefeitura e são usados como canalização de águas pluviais da cidade. Além disso, havia também um cemitério de escravizados no Banhado, mas como relata Donizetti:
“[…] esse lugar foi danificado pelo setor imobiliário, que vendeu aquelas terras, fizeram casas, bar e fábrica de cerveja em cima e acabou com tudo. Mas a história está viva. Quem sabe contar a história, ainda conta a história do cemitério dos escravos. E eu tive lá pessoalmente, eu pude ver aquelas bolas de ferro, as correntes e tudo mais. Mas hoje em dia você não acha mais nada, porque eles cuidaram de acabar com tudo, não deixar vestígio para que não fosse descoberto, né? Porque o interesse é especulativo e não histórico.”
Continuando com o tema das histórias orais, Donizetti relatou a presença do folclore do Banhado em suas memórias e apontou que hoje em dia pouco ou nada é falado sobre esses causos, como as aparições do Lobisomem, do Escravo do Tronco, de fantasmas e também do Pantasma, sendo este “um homem grandão que passava regularmente na linha do trem pra poder contar essas histórias.”. No entanto, Donizetti ressalta que essas histórias todas não são mais contadas, estão apenas na memória das pessoas que viveram esses acontecimentos anos atrás.
Atividades culturais e de visitação ao Banhado acontecem com regularidade, onde grupos como o “Resgatando São José” e a “Sacolinha da Solidariedade” formados por crianças, jovens e adultos interessados em aprender mais sobre a cidade na qual vivem e ter momentos de lazer nela, percorrem a comunidade para conhecer o seu espaço, suas hortas, suas nascentes, para ouvir as histórias, os cantos com sanfona dos moradores mais antigos e também para conhecerem um pouco da luta dos moradores pelo direito da permanência em seu território.
O enfrentamento do Banhado à lógica burguesa da cidade mercadoria
As tentativas de remoção das famílias do Banhado são antigas. Em 1984, o lugar foi reconhecido como Área de Preservação Ambiental Municipal. Já em 2002, após o lugar ter sido instituído também como APA Estadual – por ser uma reserva de Mata Atlântica e de grande relevância como ecossistema natural, as investidas da Prefeitura contra a permanência dos moradores se intensificaram sob os argumentos de falta de saneamento básico, de condições precárias das residências, por ser área de risco. Isso tudo constrói a culpabilização da população do Banhado pela poluição do meio ambiente. Já que a Prefeitura reconhece que a comunidade precisa de melhorias de infraestrutura, por que não pensar coletivamente numa urbanização que atenda às demandas dos moradores e que respeite a natureza? Há prédios luxuosos habitados pela classe alta e média alta no entorno da comunidade, também localizados na APA, mas a Prefeitura não os ameaça de remoção e não os culpabiliza sobre a poluição do meio ambiente, mesmo despejando seus esgotos no Banhado. Dois pesos, duas medidas.
O morador Renato Leandro Vieira, por meio de áudios no WhatsApp para a bolsista PIBCUL Pamella Provenzano, explicou que durante o mandato (1997-2004) do prefeito psdbista de São José dos Campos, Emanuel Fernandes, o mesmo buscava investimentos para construir uma rodovia onde é o Banhado – conhecida como Via Banhado. Em 2006 foi quando o prefeito da época, Eduardo Cury do PSDB, alcançou um financiamento com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O financiamento da Via foi aprovado em 2010, porém em junho de 2011 movimentos populares denunciaram as irregularidades no processo de construção da Via Banhado, pois diversas famílias foram removidas da comunidade, recebendo indenizações pífias do município, e realizaram uma denúncia oficial contra o projeto no Mecanismo Independente de Consulta e Investigação (MICI), um órgão autônomo ao BID, mas pertencente à sua estrutura organizacional.
Segundo informações divulgadas pelo jornal O Vale, o empréstimo do BID para a Prefeitura de São José dos Campos foi de US$ 85,67 milhões. Em maio de 2016, a partir das denúncias feitas ao MICI, o órgão emitiu um relatório apontando o descumprimento de dez normas do Banco, como por exemplo a “falta de consulta adequada aos moradores do Banhado, falta de acesso a informações e falhas ambientais” (Alves, 2017). Somado a esses fatores, foi reconhecido que houve também a falta de opção de indenização e reabilitação adequadas aos moradores, além deles não terem tido acesso a um plano de reassentamento final. Em junho de 2016, a Prefeitura de São José dos Campos cancelou o projeto. Concluindo, o relatório indicou que a Prefeitura não cumpriu as normas do BID. Portanto, a Via Banhado perdeu o financiamento do Banco Interamericano naquele momento.
Todavia, em julho de 2021 a Prefeitura de São José dos Campos, agora com o psdbista Felício Ramuth, retomou o desenvolvimento do projeto da Via Banhado, prometendo finalizá-lo até o final deste ano. Além do mais, a Prefeitura sinalizou que os descumprimentos de normas apontados pelo relatório do MICI dizem respeito à atuação do BID e não à atuação do município.
No meio de tantas ameaças e resistências, em 2012, foi instituído o Parque Natural Municipal do Banhado e em 2017, o bairro foi reconhecido como Zona de Especial Interesse Social, garantindo, assim, o direito de morar no Banhado. No entanto, desde então os moradores da comunidade se sentem inseguros até para reformar suas casas, por conta da constante ameaça de remoção e por causa do monitoramento da Prefeitura, que não permite novas construções. Como representantes do Banhado relataram ao blog do Museu das Remoções,
“As análises de risco ignoram as condições históricas e culturais do bairro, constituído por famílias de três e até quatro gerações, fato que denota fortes motivos para permanecer no local.”.
De outubro de 2018 a maio de 2019 foi elaborado o Plano Popular de Urbanização e Regularização Fundiária do Banhado, numa parceria entre a Associação Comunitária do Banhado e do Jardim Nova Esperança com a PExURB (Grupo de Práticas de Pesquisa, Ensino e Extensão em Urbanismo) do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP. O processo se deu por meio de oficinas técnicas e participativas, visitas de campo e seminários com colaboração dos representantes da comunidade. Vale ressaltar que o Plano Popular foi lançado na data comemorativa dos 100 anos do Banhado.
Como dito anteriormente, Banhado é reconhecido como uma APA municipal e estadual. Com isso, a Prefeitura se utiliza de diversos argumentos sob a escusa de “proteção ambiental” e de que os moradores da comunidade são responsáveis pela poluição da região para tentar promover um apoio popular para a remoção da comunidade. Inclusive, a turfa – material orgânico com potencial combustível e de equilibrar o solo – do Banhado é apontada como um grande risco de início de incêndio. Contudo, se a Prefeitura dialogasse com os moradores mais antigos, saberia que pelo fato de Banhado ter uma estrutura de solo de várzea – onde antigamente o Rio Paraíba do Sul enchia com suas águas, a turfa da comunidade é submersa, portanto sem risco de incêndio. Como aponta o morador José Donizetti de Paula sobre a turfa,
“[…] Ela pega fogo com muita facilidade estando fora da água e secando. E, por isso, a Prefeitura usa essa argumentação para dizer que nós vamos todos morrer queimados e que a gente corre risco de ser intoxicado pela fumaça da turfa e essas coisas assim. Mas só que não bate com a realidade. Porque primeiro que a turfa tá dentro d’água, porque aqui é banhado, e a própria Prefeitura colabora pra turfa tá dentro d’água, porque ela não limpa a valeta mestra. Então essa é uma mentira que a Prefeitura faz circular na mídia, tudo para instigar a sociedade civil a apoiar a nossa remoção.”
Assim como na Vila Autódromo no RJ, é notado que as Prefeituras seguem certos padrões de atuação e assim como na comunidade São Rafael na PB, a atuação do Banco Mundial pelo BID se faz presente nas margens da periferia geopolítica do mundo. No caso, nas favelas do Brasil, país emergente do Sul Global. A lógica burguesa de mercantilização da terra e de tudo que há nela tenta expulsar a todo custo as pessoas que pertencem àquele território, que têm sua identidade vinculada a ele. No Banhado, a resistência é grande, as mobilizações comunitárias são fortes e estão cunhadas nos primórdios da ocupação dessa região – com os indígenas e quilombolas. Apesar de desde 2017 a comunidade ser reconhecida como ZEIS, os moradores almejam e lutam para ter paz para morar dignamente na terra em que estão, de serem ouvidos com respeito pela Prefeitura e de pôr em prática o seu Plano Popular de Urbanização e Regularização Fundiária. Enquanto o direito à cidade e à moradia digna deveriam ser regra, em 2021 ainda são uma exceção.

Fotografia do Arquivo Público do Município de São José dos Campos. Na imagem, vemos Dona Vitinha com um bebê no colo andando na linha do trem na comunidade do Banhado.
Sem data. Cedente: José Donizetti de Paula.
Fotografia do Arquivo de Marcia Pfannemuller. Na imagem, há o registro da passagem da chuva de granizo que caiu no Banhado, com cristais de gelo pelo barranco e na linha do trem.
Sem data. Cedente: José Donizetti de Paula.


Horta de Donizetti com valeta repleta de algas e com turfa dentro d’água.
Data: 25 de maio de 2019.
Fotografia de José Donizetti de Paula. Cedente: José Donizetti de Paula.
Periquito na embaúba durante passeio do projeto “Resgatando São José”.
Data: 25 de maio de 2019.
Fotografia de Sinai Faingold.
Cedente: José Donizetti de Paula.


Uma das Assembleias de elaboração do plano popular de regularização fundiária, onde foi apresentada a maquete e os moradores estavam unindo suas perspectivas aos termos técnicos.
Data: 14 de junho de 2017.
Fotógrafo: Douglas Almeida.
Cedente: Renato Leandro Vieira.
Preparação de cartaz por Mayla de Oliveira para manifestação na rua.
Data: 25 de outubro de 2018.
Fotografia feita pelo celular de Mayla de Oliveira.
Cedente: Renato Leandro Vieira.


Ato na Câmara Municipal a favor da regularização fundiária do Banhado. Da esquerda para a direita: Elaine Lopes e Miriam.
Data: 2 de setembro de 2019.
Fotógrafa: Caroline Farnesi Borriello.
Cedente: Renato Leandro Vieira.
Ação da Prefeitura no Banhado após um morador ter comprado material de construção para reformar sua casa. A Prefeitura recolheu os materiais e destruiu o que já havia começado a ser construído.
Data: 6 de agosto de 2020.
Fotógrafo: Lucas Lacaz Ruiz.
Cedente: Renato Leandro Vieira


Manifestação com faixa de apoio ao movimento Banhado Resiste!
Data: cerca de 2015.
Fotógrafo: Lucas Lacaz Ruiz.
Cedente: Renato Leandro Vieira.
Comemoração de 100 anos do Banhado. Da esquerda para a direita: Alexandre Martins, Renato Leandro, Douglas Almeida, David Morais e André Toledo.
Data: 26 de outubro de 2019.
Fotógrafa: Elaine Lopes.
Cedente: Renato Leandro Vieira.


Homenagem ao Sr. David Bigode, defensor do Banhado há 40 anos.
Data: 28 de outubro de 2019.
Fotógrafo: André Luiz de Toledo.
Cedente: Renato Leandro Vieira.
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